Religião, Medo e Recompensa - Virgínia Leal
Sabemos que, em tempos remotos da história humana, os homens se agrupavam por necessidade de proteção, não só por conta dos ataques por animais selvagens, mas também devido às intempéries climáticas. O temor à fúria da natureza gerou a primeira forma de submissão a um poder maior. Aqueles que criaram formas e fórmulas de aplacar essa força desconhecida, com rituais, oferendas e sacrifícios tinham poder sobre o grupo, os conhecidos sacerdotes ou pajés. Esse líder místico, em alguns casos e ao longo da história, era o mesmo que organizava o grupo, ditando regras de convivência. A separação entre o Estado e a religião é historicamente recente. Há, então, uma dupla motivação à submissão, o temor e a necessidade de proteção, que é prometida tanto pela religião, quanto pelo Estado.
A religião surgiu para ajudar a suportar o insuportável. Veio para dar consolo e ao encontro do anseio por respostas a questões existenciais. Para conseguir esse intento, criou a ideia de uma entidade ou poder superior, criador de todas as coisas. Toda religião tem, em sua teoria, a ideia de gênese ou de cosmologia. A maioria delas é fundada sobre o temor e submissão, também conhecida como servidão.
Aprendemos a nos submeter em troca de alívio de nossas angústias e de certezas instituídas pelo conceito de verdade. A verdadeira servidão, aquela que se realiza ao estar a serviço de um propósito, ao plano de Deus foi desvirtuada pela acomodação e pela renúncia da autonomia. Deixou-se a cargo de Deus a realização do que cabe ao indivíduo. Inverteu-se os papeis, Deus existe para atender aos desejos de cada um.
Há religiões que prometem prosperidade, outras o paraíso, outras a salvação. Toda religião tem dogmas, mistérios e milagres porque nem tudo pode ser explicado ou justificado pela razão. Tanto a religião como a ciência são baseadas na obediência a seus preceitos, havendo consequências em seu descumprimento. Se há desobediência à lei da gravidade, por exemplo, o resultado é se acidentar e até morrer. Isso remete à necessidade de conhecer as regras ou leis naturais e “sobrenaturais” que regem a vida humana e que precisam ser observadas. Apesar da desconstrução de crendices, o temor ao castigo provocado pela rebeldia continua a existir. Quando se tem alguma compreensão sobre as leis universais, a obediência se converte em ato voluntário e espontâneo.
A aspiração pela autonomia decorre do anseio mais íntimo e profundo de aprimoramento e desenvolvimento pessoal, caminho que naturalmente leva a Deus. Esse anseio, no entanto, é abafado pelo condicionamento e hábito da dependência que a submissão traz. Ser livre importa em responsabilidade nas escolhas. O condicionamento de delegar as decisões ao Estado e à religião é um obstáculo. A submissão atrofia o discernimento, a análise, a compreensão, por aceitar sem questionar as respostas alheias.
As religiões são recortes da verdade, assim como as diversas correntes de pensamento. O budismo se baseia no conceito de inclusão, o cristianismo evangélico destaca a graça, o catolicismo dá ênfase aos sacramentos, o espiritismo à caridade. Cada pessoa escolhe aquela que faz mais sentido para si. A religião é uma experiência mais coletiva que pessoal, daí a necessidade de templos, igrejas e sinagogas. Seja qual for a religião adotada, o importante é ter a consciência de que a orientação a seguir é pessoal, a resposta está dentro de si, o norte é a sabedoria divina que habita em cada um.
O homem ainda tem dificuldade de se ligar a Deus sem a assistência de uma religião, daí a importância dela, não importa o embasamento teórico, os dogmas, os rituais e as práticas que venha a ter. É importante estar consciente, entretanto, que a religião como a concebemos, desvirtuada pela imperfeição humana, é um sistema de crença estruturado no medo e na recompensa. Temor a Deus e medo do diabo. Medo do juízo final. Medo de pecar pelo temor ao castigo. O Deus que tudo pode, tudo vê e está em todo lugar é um Deus que inspira medo. A penitência, uma forma de castigo brando, oferece o perdão de Deus àquele que confessa e arrepende-se dos pecados. Recompensa pela obediência aos preceitos religiosos. Em face da imperfeição humana, que desvirtua o sagrado, a religião foi e é usada como mecanismo de domínio e controle das massas, para aplacar a revolta dos desassistidos e desprivilegiados. Controle pelo medo e pela culpa. Oferece consolo e promete prosperidade, paraíso ou salvação em troca da resignação ou conformismo. Onde há medo, se tenta barganhar com Deus e o amor não prospera. Onde há domínio e subjugação, não há verdadeira mudança, não florescem as virtudes. A ideia polarizada de bem e mal propagada pela religião não considera que o erro é inerente ao ser humano e ele nem é 100% bom, nem é 100% mal. É um ser em aperfeiçoamento, a caminho do divino. O mal é a ignorância do bem, pelo distanciamento de Deus.
A verdadeira religião é aquela que liga o homem à Deus através do amor. Se Deus é amor, não há por que temê-lo. Onde há amor, não há medo e o próprio amor é a recompensa de quem ama. Mas para viver o amor, é preciso sacralizar o corpo físico, estar inteiro e presente nele, porque não é possível sentir e viver fora dele. A experiência do amor traz o consolo e alívio genuíno, porque tira o indivíduo da angústia existencial, do medo e do desejo egoico e o transporta para o Centro, o Eixo, a Bússola que nele habita, o Farol que ilumina todo seu ser.
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