A Loucura Civilizada - Virgínia Leal
Discorri em vários textos reflexivos sobre a ética como tentativa de estabelecer padrões de comportamento que viabilizem a convivência harmoniosa e pacífica em comunidade. Apontei a necessidade de sua existência sem a qual o convívio seria impossível. Por outro lado, abordei a problemática resultante dessa estrutura, face ao alijamento da singularidade como componente.
Agora, quero destacar o sofrimento psíquico que esse adestramento social pode causar e que resulta em sintomas, a mais das vezes rotulados de loucura.
Para se falar de loucura é preciso partir do parâmetro de normalidade. Será que estar perfeitamente adaptado ao comportamento que foi pré-estabelecido como o esperado, aceito e válido é ser normal?
Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e Roberto Crema, no livro “Patologia da Normalidade”, define que normose é “um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida”. Para eles, quanto mais adaptado a pessoa for a esses padrões, menos normal será.
Partindo do pressuposto de que as regras de conduta social impõem ao indivíduo renunciar ou controlar seus impulsos, pulsões e desejos em prol do convívio idealizado, a civilidade é castrador. Renunciar ou moldar a expressão do desejo ao permitido é fonte de infelicidade. Como tal deve ser reconhecido, para não se perder de vista, nem se amorteça de forma danosa a natureza instintiva humana. É a falta de contato com os impulsos, pulsões e desejos que geram a infelicidade, os sintomas e a perda de sentido na vida.
Considere-se, ainda, que cada pessoa tem sua forma própria de ver a realidade e de afetar e de ser afetado pelas coisas, pelo outro, pelo mundo. E ao se tentar “encaixar” todos num padrão, estar-se-á rejeitando a diversidade. Muitos renunciam à sua individualidade para serem aceitos, reconhecidos e validados e aí o sofrimento se instala. Muitos transtornos mentais nada mais são do que sintomas da opressão causada pelas regras éticas e de civilidade.
O que muitos reputam como loucura é a mais genuína normalidade, é a sustentação da singularidade em um sistema que pretende homogeneidade. É esse tipo de imposição que cria a discriminação, a intolerância e o preconceito. Aquele que se homogeneizou não suporta o diferente porque ele revela a autenticidade por aquele desprezada.
A ética, a civilidade e a moralidade são mecanismos de repressão, ainda que necessários e úteis. Incorporá-los à personalidade de forma indiscriminada e sem avaliação crítica pode trazer transtornos mentais de toda ordem. Esses transtornos nada mais são que a rebelião psíquica dos que não conseguem adaptar-se àquilo que lhe é nocivo. Nesse sentido, é uma loucura bem-vinda, porque pode devolver a sanidade mental ao indivíduo.
Aquele que pratica a ética sem perder de vista qual é sua motivação e finalidade, consegue manter um mínimo de sanidade mental, ainda que não evite os sintomas derivados da repressão. E preserva a individualidade no exercício de sua conduta ética.
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